A menina devia ter uns quatro anos...
A avó lhe fez comida, a mistura da neta era um ovo e a da avó um pedaço de carne, um pedaço pequeno. Eram arroz, feijão, farinha e uma misturinha.
A neta vendo a mistura da avó resolveu que também queria um pedaço de carne, como não havia um outro pedaço de carne, a avó tirou o pedaço de carne que ela já mastigava de dentro da boca e deu à neta.
A neta comeu o pedaço de carne da avó e o ovo, de forma que a avó ficou sem mistura, mas ela não se importou...
Ela abraçou a neta e gostou que ela tivesse comido a carne...
A neta nunca poderá esquecer este dia, ainda que viva mil anos.
À neta foi concedida a dádiva de viver e ser criada pela gentil senhora por 27 anos, num 7 de setembro, a avó partiu, uma doença estranha a levou sem essa nem aquela.
Um dia a neta e a avó estavam assistindo TV, então a neta olhou para a avó e achou que ela estava fazendo uns movimentos muito estranhos, língua, boca e braços se moviam de maneira descompassada e involuntariamente.
A neta preocupou-se. Chamou a irmã que veio passar a noite com a avó até ela chegar.
Fazia um inverno muito rigoroso naquele ano de 2007, então a neta pensou que podia ser por frio que avó fazia aqueles movimentos.
Comprou um aquecedor.
Não adiantou, não era frio, de certo não era...
A neta chorou, chorou, chorou...
Pediu a Deus encarecidamente que não fosse nada e que tivesse cura com remédio de farmácia, tomado de oito em oito horas por alguns dias.
No hospital público do bairro onde moravam ninguém sabia dizer o que causava aquele descompasso na avó. A neta assustou-se, uma doença que no hospital não conheciam, só podia ser algo bem ruim.
Levou a avó ao Hospital das Clínicas, lá, já na porta, um médico muito jovem perguntou:
- Ela está com Coréia?
A neta não sabia, nunca tinha ouvido falar em uma doença chamada Coréia.
A neta e a avó ficaram no hospital durante todo um dia, saíram de lá por volta de 21 horas, não tinha jeito, essa tal Coréia não se curava com remédio de farmácia, na verdade aquilo não tinha cura, mas a neta não sabia e o médico também não quis dizer para não magoar.
A avó foi perdendo a memória pouco a pouco, um dia a neta entrou e ela a olhou com um olhar vago, que não estava mais aqui neste mundo... Os olhos olhavam, mas não reconheciam a neta. Quem seria aquela? Eles pareciam perguntar.
Passou a chamar a neta de nomes variados sem ter idéia de que aquela era neta que ela criou, a neta a quem ela transmitiu tudo de melhor que podia.
Apesar de ser muito conhecida pela braveza, pela falta de paciência, uma palavra para definir a avó seria “finura”.
A avó apesar de ter sido faxineira e depois passadeira, não saber ler nem escrever, era fina. Gostava de música clássica, porque é suave, ela dizia. Gostava demais do som do acordeão porque lembrava sua terra.
Jamais falava palavrão.
Nunca tinha as mãos sujas.
Sempre usava uma peça vermelha, sua cor preferida.
Sempre passava perfume.
E sempre recomendava, “tem que passar blush sempre”.
Mesmo um ano após sua morte, suas roupas têm o mesmo cheiro de lavanda.
Não sabia ler nem escrever, é verdade, mas sempre admirou as letras e achava muito bonita a profissão de professora, porque, para ela, ser professor era ter quase um dom divino, é o dom de desvendar aquele universo que ela não compreendia.
Eram a avó, a tia e a neta, que moravam juntas.
A tia morreu...
A avó sobreviveu porque precisava ficar com a neta.
A avó se orgulhava tanto de nunca ter feito uma cirurgia na vida, tinha horror a hospitais.
Quando viu que estava fadada a ir e vir de hospitais, tratou logo de morrer, porque ela sabia que aquilo não era para ela.
A avó nem conseguia entender muito o que de fato ela havia feito pela neta.
A neta cresceu achando ser professora uma coisa muito bonita mesmo e fez Letras na faculdade, estudou todas as artes na melhor universidade do Brasil...
Aprendeu que ensinar é mesmo um dom, descobriu que a avó tinha razão, o saber mudar a vida das pessoas.
A tia sempre dizia à neta, que também era sua sobrinha, que o saber é a única coisa que nunca será roubado de quem o tiver.
A neta e sobrinha ouviu atentamente as indicações dos dois serezinhos que a criaram com tanto amor e sacrifício. Juntou os sonhos das duas, meteu-os na cabeça e traçou um objetivo e foi assim que uma analfabeta e uma semi-analfabeta mandaram alguém para Universidade de São Paulo.
Se para elas, a vida foi muito difícil por não ter o domínio das letras. A neta tratou de fazer das letras seu ganha pão... Estudou e se aprimora a cada dia, tornou o sonho das parentes amadas realidade, tornou-se uma pessoa refinada sem esquecer jamais suas origens.
Daqui dois dias, faz um ano que avó morreu, seu espírito deixou o corpo doente...
Apesar da dor cruciante que a neta sente, ela sabe que a avó não morreu porque parte dela vive na neta, assim como viverá nos filhos da neta e assim sucessivamente por toda a eternidade.
A neta chora quando ouve acordeão ou quando pega o livro que avó folheava porque achava bonito. Sempre perguntava à neta sobre o que falava aquele livro. O livro fala sobre os arquétipos literários, de um autor russo... Meletínski.
Desde cedo, a neta fora desafiada pelas pessoas que achavam que pobreza era sinal de incapacidade... Hoje, até russo a neta fala...
Sempre existiram pessoas para dizer que ela não era capaz e hoje a frase de honra da neta é: Eu sou capaz de tudo, de qualquer coisa e ninguém pode me provar o contrário.
Eu, a neta Flávia, agradeço por demais a minha avó, Erundina, pelos infinitos pedaços de carnes que tu me destes na vida, mas sobretudo por me ensinar e me mostrar que eu sou capaz de comprar todos os pedaços de carne que eu desejar comer.
Flávia, neta de Erundina e sobrinha de Raimunda, com muito orgulho.
Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
Um comentário:
Sem palavras para tudo isso.
Olhos cheios de lágrimas e saudades demais.
Amo você a vovó e a tia.
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