Confesso que jamais tinha ouvido a palavra ‘escafandro’, vestimenta impermeável e hermética, provida de um aparelho respiratório, e própria para mergulhos demorados... De fato, isso descreve bem condição quase irremediável de Jean Dominique Bauby, ou Jean-Do...
O editor da Revista Elle francesa sofreu um acidente vascular cerebral, também conhecido pela sigla AVC, aos 42 anos, enquanto mostrava seu belíssimo carro conversível ao filho. Quase tudo ficou paralisado, exceto por uma pequena parte, o olho esquerdo. Sua inteligente médica conseguiu desenvolver um método dele se comunicar assim mesmo. Um amigo observou muito bem que essa só poderia ser uma invenção francesa, pois os franceses falam tanto que deram um jeito de falar até usando um único olho...
Jean-Do escreveu o tocante livro O Escafandro e a Borboleta e é baseado neste livro que Julian Schnabel fez a sua adaptação para o cinema. Temos portanto o ponto de vista do narrador-protagonista Jean-Do.
A voz ‘over’ surge no início do filme... Mas, mais importante que a voz ‘over’ do narrador é o olhar... Um olhar embaçado, que se abre e não sabe o que aconteceu, um quarto de hospital, a tentativa desesperada de ao menos falar. Bauby permanece imóvel dentro do seu escafandro. Uma vida paralisada...
Lembrou-me demais o Mar Adentro de Alejandro Amenábar, com a diferença que Bauby queria viver, pois descobriu que mesmo com apenas um olho é possível se comunicar com os outros...
O filme é muito sensível, tocante. Aliás, este é um fenômeno moderno, necessitamos tanto de histórias inspiradoras para continuar a nossa própria. Há ainda uma outra característica essencialmente moderna, na classificação de índice de um filme (drama, aventura, comédia, romance etc.), algo atrai o público de hoje para os filmes que contam com a seguinte denominação “baseado na história verídica de fulano”. O contrato com o real é um atrativo a mais, se não absoluto para vermos o filme, lermos o livro, assistirmos a novela etc. Claro que esse aspecto está ligado ao fato de buscarmos histórias inspiradoras, talvez seja bom saber que a história é real para simplesmente sentir o prazer de ser um humano perfeito e chegar à conclusão que vivemos a procurar pêlo em ovo mesmo. Afinal se o cara tem vontade de viver e escreveu um livro incrível com apenas um olho, por que eu, com minhas duas mãos, meus dois bons olhos, não poderei escrever um livro ou fazer qualquer coisa que seja absolutamente maravilhosa?
Na verdade, talvez seja apenas a velha magia da arte só que se readaptando a um mundo cada vez mais órfão de motivos. Na arte, podemos viver uma vida que não é a nossa, ter uma vontade que não é a nossa, por isso o grande sucesso do cinema americano e seus “happys ends”, algo artificialmente construído para fazer o mundo acreditar que o padrão americano é o melhor, afinal os EUA não podem deixar de ser a terra das oportunidades. No cinema europeu, temos uma visão um pouco diferente, a tentativa de inovar, de transformar, mesmo como no caso de O Escafandro e a Borboleta, que é uma história real, um filme em uma obra de arte. Essa não é uma regra, pois nem todo o filme europeu consegue ser uma obra de arte. Mas, certamente, por uma série de questões que não cabe aqui discutir, o compromisso com a arte é outro.
O filme do diretor Julian Schnabel não só transforma o livro em um filme, mas faz mais do que isso coloca elementos próprios do cinema que tornam a história ainda mais tocante, os flash-backs do protagonista são uma contraposição dolorosa ao estado presente do personagem no filme. Os travelings (cenas em que a câmera segue o personagem em um carro, trem etc.) são a antítese do estado de Jean-Do, a que se notar aqui a boa influência do clássico Acossado do diretor Jean-Luc Godard. Entre as cenas, Jean-Do sempre é mostrado dentro de um escafandro mergulhado no mar, revelando como tudo à sua volta continua exatamente igual, a vida segue seu curso, ele é que está preso ao seu escafandro.
Um filme todo feito de duplos como o próprio nome sugere, a vida do protagonista que foi cortada ao meio; com a vida perdida ficaram a mulher amada, o glamour, o movimento; na vida que restou, ficaram a ex-esposa, os filhos, a paralisia, apareceu uma ortofonista que tornou seu livro possível. A grande questão de filmes como este sempre é o que de fato acontece com alguém que passa por este tipo de tragédia. O velho clichê não deixa de ser repetido, afinal após o acidente Jean-Do passa a ser uma nova pessoa e os acontecimentos passados tão recentemente, são agora quase que mágicos. A convivência com a família, o abraço do filho, do pai e até a ex-esposa são supervalorisados, tornam-se quase que sagrados. Mas, além da velha moral das fábulas, “Dê valor à sua vida porque você nunca sabe o dia de amanhã”, vemos que o protagonista não se amaldiçoa pelo que aconteceu e pela falta de responsabilidade com sua vida antes do acidente. Ele busca novos motivos para continuar vivendo e é deliciosamente irônico com seu estado atual, acha graça da saliva que escorre dos seus lábios inertes, fica dizendo a si mesmo que não é justo olhar as médicas bonitas sem poder fazer nada.
Ao final do filme, ficamos com a sensação que na verdade o filme é sim uma celebração da vida não uma lamuriação.
A metáfora da borboleta ganha um novo sentido.
Destaque para as incríveis atuações do protagonista Mathieu Amalric (Jean Dominique Bauby) e da coadjuvante Emmanuelle Seigner (Céline Desmoulins).
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