quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Um crime americano?

Um título sugestivo, o que define o crime é o fato dele ser americano, ou seja, um crime tipicamente americano. Será? Como boa anti-americana, tendo a concordar com esse tipo de afirmativa. No entanto, não vou acreditando assim sem saber do que se trata. Afinal, fenômenos do Mal estão por toda parte, Hitler e Mussolini não nasceram nos Estados Unidos da América.
O que levaria um ser humano a agir como Gertrude Baniszweski (Catherine Keener)?
Essa é a atormentante pergunta que o diretor se faz e nos faz fazer também, não só Gertrude Baniszweski, mas também todas aquelas crianças, não apenas seus filhos, mas também as crianças de toda a vizinhança daquele bairro. Por que torturam Sylvia Likens (Ellen Page)?
Quando perguntadas a respeito do motivo pelo qual torturavam Sylvia, a resposta era simplesmente: Não sei!
Como não sabiam? O diretor Tommy O’Haver faz questão de ressaltar bem o fato de que se trata de uma comunidade altamente religiosa, todos vão à igreja, as crianças são todas freqüentadoras da igreja do bairro e o Reverendo Bill Collier (Michael O'Keefe) participa ativamente da vida de todas essas crianças. Pior que isso, todas as pessoas do bairro sabiam o que estava acontecendo na casa de Gertrude Baniszweski. E, quando perguntados pelo motivo de não abrirem a boca sobre tamanha atrocidade, disseram apenas que não podiam “se meter” e que cada pessoa sabe daquilo que acontece dentro de sua casa.
Primeiro tratemos de Gertrude Baniszweski, ela tem sua personalidade completamente afetada pela presença da jovem Sylvia Likens, uma moça inteligente, dedicada e até bem madura para sua juventude. Enfim, tudo que Gerlie queria que sua filha Paula (Ari Graynor) fosse.
Paula é uma jovem sem nenhum fundamento moral, sua mãe tem sete filhos, sendo que o último é filho de um jovem apenas seis anos mais velho que ela mesma, o que torna a mãe uma amiga sua e não mãe. Paula se mostra com uma personalidade muito parecida com a da própria mãe, alguém promíscuo, que não vê muito bem as fronteiras entre certo e errado quando o assunto é homens.
Gerlie então começa a descontar em Sylvia toda a sua frustração com a filha Paula. Na cabeça de Gerlie, Paula é alguém perfeito, jamais faria as coisas de que a acusam. Sylvia é que a má influência, ela é quem teria levado a semente da maldade para a casa dos Baniszweski. Então, cabe à Gerlie punir Sylvia por isso.
Veja bem que não se trata da representação do Mal, não se trata de um julgamento. Gerlie é ou não má? Acho que se trata muito mais de uma mente atormentada e o diretor deixa isso bem claro, ele não está dizendo que Gertrude é a representação do Mal, ela é alguém com graves problemas, apenas humana, por mais estranho que isso possa parecer.
Passemos para a outra parte da história. Por que as crianças não ajudam Sylvia e ainda por cima sentem prazer em machucá-la ainda mais?
Eu vejo uma série de valores distorcidos, não quero parecer uma tradicionalista dizendo isso, mas, só vejo esta explicação.
Lembrei-me dos julgamentos dos “culpados” pelos crimes ocorridos durante o período nazista. De quem é a culpa pelo nazismo ter existido? Do Hitler?
Certamente a resposta envolve uma série de fatores que não envolvem a idéia de uma única pessoa, Hitler tinha um plano, um plano bem definido, que foi crescendo e se tornando possível devido a muitos motivos. O Mal, aquilo que reconhecemos como sendo o contrário total do Bem, por principalmente violar a condição humana, que é para nós seres humanos inviolável, ou deveria ser, só é possível porque encontra condições ideais para se desenvolver e propagar.
Hannah Arendt, ao criar o magnífico termo “banalidade do mal”, tinha em mente isso, o mal se tornou algo banal, há condições para ele se desenvolver em quase qualquer lugar.
O Mal está dentro de cada um de nós certamente, diria Freud, mas não o cometemos porque somos seres civilizados, aprendemos a viver em sociedade e criamos valores éticos e morais que respeitam, sobretudo, a existência do outro. Viver em sociedade é levar em consideração que sua liberdade acaba onde começa o direito do outro.
Sendo assim, retornando ao caso verídico retratado no filme, parece haver um problema de valores morais. O que leva uma criança a desrespeitar a humanidade do outro? A não reconhecer que o outro sofre dores como ele também sofre?
Uma formação defasada. Trancada dentro de suas casas, assegurando suas individualidades, a sociedade que surgiu nos anos de ouro do capitalismo fez suas próprias regras. A história se passa justamente no início da crise dos Anos de Ouro do capitalismo, assim chamados por Eric Hobsbawn, 1965. A individualidade cultivada, sobretudo pela burguesia desde a Revolução Industrial, mas levada às últimas conseqüências nos nossos tempos, construiu uma nova forma de pensar, aqueles que têm dinheiro e podem jogar o jogo do capitalismo se preservam, organizam-se em pequenos grupos que façam valer aquilo em que acreditam. No entanto, uma parcela grande da população é deixada de fora, isso no mundo inteiro, não apenas nos Estados Unidos. Essa parcela cria também suas próprias regras. Mas, note-se bem que isso não é viver em sociedade, isso é visar unicamente seu próprio bem, sua própria forma de viver. Sendo assim, acredito sim, que nos Estados Unidos haja condições mais específicas para esse tipo de horror se desenvolver.
O Mal torna-se banal à medida que o respeito ao outro se perde, as regras do jogo são outras, o outro é considerado como alguém que está no jogo ou não está.
E, para terminar, o diretor deixa a inquietante pergunta: Deus tem um plano para todos, qual era o plano dele para Sylvia Likens?
Para afirmar mais uma vez, que em uma sociedade sem valores, nem Deus se justifica.
Não é um grande filme, afinal o foco está muito mais na história contada, ou seja, vemos nitidamente que o conteúdo é valorizado em detrimento da forma, o diretor deixou a “história se contar”, baseou-se unicamente nos depoimentos registrados e colocou sua imaginação para funcionar. Se não constrói nenhuma obra de arte cinematográfica, é válido pelo mérito de refazer as inquietantes perguntas feitas por tantos outros grandes pensadores ao longo dos tempos como Machado de Assis, Dostoiévski, Tolstói e a própria Hanna Arendt, já citada. Não parece ser preocupação dos norte-americanos fazer perguntas inquietantes, mas sim manter um simulacro de felicidade, garantido pelo falso otimismo existente em quase toda a cultura de massa produzida por eles. Só por ir contra a tudo isso, o filme de Tommy O’Haver, com roteiro dele próprio e de Irene Turner, já merece ser visto.
Perfeita a atuação de Catherine Keener como a estranha Gertrude.
Antes de assistir, prepare seus sentidos acostumados com uma realidade artificialmente sob controle, tudo será “sacudido”.

Ouvindo: Saudade - Marcelo Camelo

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